Qual é a filosofia do Jiu-Jitsu? Ou, mais especificamente, qual é a filosofia do Jiu-Jitsu Brasileiro? Esta é uma pergunta que passou a ser relevante no meio do Jiu-Jitsu Brasileiro (BJJ) nos últimos anos, especialmente com a modernização e profissionalização deste esporte/arte marcial. Vale lembrar que nas suas origens, no Brasil do princípio do século XX até finais do século XX, o jiu-jitsu brasileiro era visto como uma modalidade esportiva sempre relacionada a atos violentos como invasão de academias, brigas de rua e a lutas de vale tudo.

Com a expansão do jiu-jitsu brasileiro pelo mundo, especialmente nos Estados Unidos, se percebeu ua necessidade de modernizar esta arte e claro, criar uma relação com um estilo de vida e uma filosofia, retirando assim o estigma negativo existente na história do jiu-jitsu.

Mas afinal, qual é a real filosofia por detrás do jiu-jitsu brasileiro? A resposta a esta pergunta vem em duas partes: (1) intrinsicamente (e historicamente), não existe algo como a filosofia do jiu-jitsu. (2) Isso nao implica em dizer que não é possivel que exista uma filosofia do jiu-jitsu brasileiro moderno. Explicarei abaixo primeiro porque não existe algo como a filosofia do jiu-jitsu, historicamente e intrinsicamente falando, e logo depois explicarei sobre quais são as possíveis filosofias do jiu-jitsu brasileiro moderno.

O nascimento do Jiu-Jitsu Brasileiro e sua filosofia

Como já é popularmente reconhecido, o jiu-jitsu brasileiro surgiu em terras tupiniquins quando alguns japoneses oriundos da Kodokan, alguns alunos direto de Jigoro Kano, chegaram no Brasil e ensinaram o Judô Kodokan da época para alguns brasileiros em torno de 1914 (não somente os Gracies aprenderam com os japoneses e não somente Maeda, Conde Koma, ensinou Judô Kodokan aos Brasileiros).

Nesta época, o Judô Kodokan ainda não estava oficialmente batizado como Judô, sendo as vezes chamado de Kodokan Jiu-Jitsu, Kano Jiu-Jitsu ou Judô. Sendo assim, seria natural dizer que a filosofia do jiu-jitsu brasileiro é exatamente a mesma do Judo. Entretanto, não há registros de que os japoneses que chegaram ao Brasil nesta época conhecessem profundamente a filosofia do Judô, inclusive porque Jigoro Kano desenvolveu a filosofia do Judô durante muitos anos, de modo que nao é claro de que seus conceitos estivessem totalmente consistentes e claros na época da visita dos japoneses da Kodokan ao Brasil. (Por exemplo, Jigoro Kano tardou mais de 40 anos até desenvolver o princípio do Jita Kyoei, sendo que este princípio somente foi anunciado publicamente em torno de 1922, quase uma década depois da chegada dos judocas Kodokan ao Brasil).

Ao que parece, o que foi ensinado aos brasileiros foram apenas os aspectos técnicos da arte criada por Jigoro Kano e praticada na Kodokan. Assim, parece que poderíamos concluir aqui que a filosofia do jiu-jitsu não pode ter vindo da filosofia do judô, ao menos não de acordo com a linha históricca, pois na época da imigração japonesa, a filosofia do judô ainda não estava bem desenvolvida.

A filosofia do Jiu-Jitsu e o Código dos Samurais – Bushido

Outra hipótese, defendida em video pelos Valente Brothers, é a de que a filosofia do jiu-jitsu brasileira é a mesma filosofia dos Samurais, ou mais especificamente do Código de Ética dos Samurais, chamado de Bushido, dado que Jigoro Kano codificou na arte criada por ele tecnicas de estilos marciais praticados pelos Samurais, e Jigoro Kano valorizava muito o espírito Samurai e o que isto representava.

Esta tese, apesar de atraente por conta de todo o imaginário a respeito dos samurais japoneses e sua cultura, não se sustenta muito bem. Como muito bem argumentado pelo pesquisador Oleg Benesch em sua tese de doutorado e posteriormente em seu livro “Inventando o Caminho do Samurai – Nacionalismo, Internacionalismo e o Bushido no Japão Moderno“, esta ideia de um código de ética dos Samurais que era seguido por todos os guerreiros da época dos “shogunatos” japones (período entre 1185-1868) é falsa. O primeiro registro de algo que de fato se relaciona a um código de ética unificado dos samurais é o livro “Bushido – A alma do Japão“, escrito na Califórnia em 1899 por Inazo Nitobe. Este livro se tornou muito popular nos Estados Unidos, sendo que demorou alguns anos para ser traduzido ao japonês e ser reconhecido no Japão.

Segundo Oleg Benesch, Inazo Nitobe desenvolveu por conta própria esta ideia de Código de Ética dos Samurais e sua sete virtudes à partir da necessidade da época de se criar uma identidade japonesa unificada, visto que o Japão passava por fortes transformações, abertura a cultura e valores ocidentais, e não possuia algo que antigo e tradicional que unisse a grande variedade de povos japoneses. Vale lembrar que este período foi um período de muitas guerras e grande polarização política entre seus cidadãos, como por exemplo, Jigoro Kano, reconhecidamente um internacionalista (seu filho inclusive foi preso e acusado de ser comunistas) e outros nacionalistas radicais, como Jiro Nango (sobrinho de Jigoro Kano e segundo presidente da Kodokan, após Jigoro Kano), que fazia parte do grupo que na segunda guerra se aliou aos nazistas. Por isso, nada melhor do que uma identidade nacional, que vendesse o Japão como um povo virtuoso ao exterior, estratégia esta muito bem executada por Inazo Nitobe em seu livro.

Em resumo: Oleg Benesch demonstra que de fato nunca existiu, ao menos na época dos samurais, algo como um código de ética unificado, Bushido, seguido e divulgado por todos. Cada clã, cada grupo de samurai, poderia seguir seus próprios princípios e valores. Além disso, pela linha do tempo histórica, se os irmãos Valente estivessem corretos, isso implicaria que os judocas que ensinaram aos Brasileiros em 1914 teriam ensinado estes valores e este tipo de filosofia, o que sabemos que não foi o caso, pois na Kodokan não se falava de código de ética dos samurais ou mesmo Bushido. Por essa razão, pesquisadores da história do Jiu-Jitsu como Robert Drysdale já explicitamente abandonaram a ideia de qualquer relação entre o jiu-jitsu e a cultura dos samurais.

Ao contrário do que muitos pensam, o Jiu-Jitsu não tem nenhuma relação com a cultura e a filosofia dos Samurais
Ao contrário do que muitos pensam, o Jiu-Jitsu não tem nenhuma relação com a cultura e a filosofia dos Samurais

Portanto, podemos concluir que ao menos históricamente e intrinsicamente, ou seja, em sua formação, o jiu-jitsu nasceu sem qualquer tipo de relação com filosofias, códigos de éticas ou valores. Nasceu como uma transmissão de técnicas utilizadas na época na Kodokan e como um estilo de luta apenas.

A Filosofia do Jiu-Jitsu Moderno

Isso não significa de modo algum que agora, em pleno século XXI e após mais de um século de transformações e modificações, o jiu-jitsu não possa passar a ter uma filosofia. Para qualquer arte marcial ou escola de pensamento que se propõe a ter a mente aberta e humildade é possível o aprendizado e aabsorção de novas formas de pensar. Por isso, atualmente muitas escolas de Jiu-Jitsu passaram a adotar alguns princípios filosóficos do Judô, como os princípios de Seiryoku Zenyo e Jita Kyoei, e outras escolas e praticantes passaram a adotar outros estilos de filosofia que se encaixam perfeitamente bem com o Jiu-Jitsu moderno, como a Filosofia dos Estóicos. Em um próximo post entraremos em mais detalhe sobre qual seria a melhor filosofia para o jiu-jitsu moderno.