O texto abaixo foi retirado do livro Ju-No-Kata, escrito pela Sensei Keiko Fukuda. Já falamos um pouco sobre a Keiko Fukuda aqui em nosso site, quando falamos brevemente sobre a história da igualdade de gênero no Judô. Sensei Keiko Fukuda era neta do primeiro Sensei de Kano, Hachinosuke Fukuda, e foi a primeira e única mulher a atingir o grau de 10º dan, grau este somente reconhecido em agosto de 2011, quando ela tinha 98 anos de idade (Keiko Fukuda faleceu em 9 de fevereiro de 2013). O lema da Sensei Fukuda era “Ser gentil, amável e bonita, ainda firme e forte, mentalmente e fisicamente”.  Confira abaixo o texto escrito pela Sensei Keiko Fukuda.

Kano Jigoro Shihan, Fukuda Hachinosuke e eu

(por: Keiko Fukuda)

Na primavera de 1934, vimos o término da construção da nova sede da Kodokan, um prédio moderno de três andares na esquina do distrito Suido Bashi de Tóquio. O Shihan Jigoro Kano (fundador e lider do Judô Kodokan) presidiu com dedicação e diante da grande multidão a celebração do 50º Aniversário da Kodokan.

Como parte dos membros sobreviventes da família de Hachinosuke Fukuda, o primeiro professor de Jujitsu do Shihan Jigoro Kano, nós recebemos um convite para este evento, assim, minha mãe Tatsu, meu irmão mais velho Eikichi e minha tia Maruyama Yuki decidiram ir ao evento. No corredor principal, Shihan Kano ofereceu preces para a alma dos seus três queridos professores de Jujitsu: Fukuda Hachinosuke (Tenshin Shinyo Ryu), Iso Masatomo (lider do Tenshin Shinyo Ryu) e Iikubo Tsunetoshi (Kito Ryu). Ao final daquele dia, meu irmão descreveu a cena para o resto de nossa família. Ele disse que Shihan Kano parou na frente da placa memorial que dizia “Fukuda Hachinosuke Sensei” e parecia estar ali conversando com meu avô como se ele estivesse vivo. Meu irmão ficou tão emocionado com esta cena que seu coração se encheu de emoção e ele simplesmente não conseguiu evitar cair em lágrimas. Ele não estava sozinho vendo esta cena.

Depois que meu avô faleceu em 1880, minha família perdeu contato com a família de Kano por um bom tempo. Este grande vazio em nossa relação foi ficando de lado após a comemoração dos 50 anos da Kodokan, quando o Shihan Kano visitou nossa casa em Noborito (na Cidade de Kawasaki, perto de Tóquio), trazendo várias memórias para a ocasião. Conduzi Shihan Kano para nossa sala e enquanto eu trazia a ele um copo de chá, ele disse “Você é a imagem de Ryu-san”. Meu pai, o filho de Hachinosuke (Ryukichi) faleceu quando eu tinha oito anos de idade, então nunca ouvi ninguém falar assim sobre ele como Shihan Kano o fez. Fiquei muito comovida pelas palavras, já que trouxeram memórias de meu pai. Meu pai tinha apenas nove anos de idade quando meu avô faleceu, e por isso, Shihan Kano deveria estar se lembrando daquele garoto de nove anos de idade quando chamou ele de “Ryu-san, Ryu-san”. Eu lembrei de meu pai sentando a mesa para jantar, quando ele tinha dificuldades de comer em sua tigela de arroz porque ele não era capaz de dobrar seu braço mais que 90 graus. Ele nunca mencionou isso, mas eu sabia que ele havia machucado seu cotovelo durante a prática do Jujistu. Eu vivi com meu pai por um período muito curto, mas ainda me lembro dele com carinho, de tempos em tempos.

20 de Setembro de 1938, na Seção Feminina da Kodokan. Jigoro Kano está no centro da foto. Keiko Fukuda está na segunda fila, a terceira do lado esquerdo.

20 de Setembro de 1938, na Seção Feminina da Kodokan. Jigoro Kano está no centro da foto. Keiko Fukuda está na segunda fila, a terceira do lado esquerdo.

Naquele dia, quando Shihan Kano visitou minha casa e eu servi a ele chá, ele me estimulou a visitar a Kodokan, enfatizando que havia uma seção somente para mulheres agora e que o treinamento me ajudaria a construir um corpo sadio e forte. Assim, junto com meu irmão, visitei a Seção Feminina da Kodokan alguns dias depois. Em setembro do seguinte ano eu tomei uma decisão e me inscrevi na Seção Feminina da Kodokan. Como parte do procedimento, tive que assinar o juramento de “não praticar em nenhum lugar que não seja a Kodokan”. O treinamento acontecia todos os dias das 15 horas até as 18 horas. Nessa época, a Seção Feminina estava sobre a tutoria direta do Shihan Kano (como lider da Kodokan). Era requerido que nos comportassemos de maneira apropriada e refinassemos nossa fala como as jovens damas da gentileza. Quatro das netas do Shihan Kano faziam parte da Seção Feminina da Kodokan, e elas eram tão animadas que a sua presença enchia o salão de prática com vida e calor humano.

Meu avô, Hachinosuke Fukuda, cujo nome profissional era Ryugi-Sai, era o lider da escola de Jujitsu Tenshin Shinyo Ryu e ensinava Jujitsu na sala de treinamento de artes marciais do Shogunato que governava. Ele viveu em um periodo de revoltas políticas, quando 250 anos de comando do Shogunato Tokugawa foi derrubado pela Restauração Meiji. Com o retorno do Imperador Meiji à liderança suprema do país, a distinção de classes entre guerreiros e cidadãos foi desintegrada, e os Samurais de fato desapareceram. A posição de meu avô com o antigo governo também desapareceu, o que é muito provavel que esta seja a razão que fez com que ele decidisse abrir seu próprio dojo. Foi nessa época que um jovem estudante da Universidade Imperial de Tóquio, Jigoro Kano, se inscreveu como aluno. Nessa época, o uniforme de treinamento tinha mangas bem curtas e também as calças curtas, dando pouca proteção para o corpo. O corpo do jovem Jigoro Kano estava quase sempre coberta com bandagens e por isso ele recebeu o apelido de “Band-Aid” Kano.

Meu avô foi um artista marcial bastante realizado, mesmo quando jovem. Uma vez eu estava na escola de gramática quando minha mãe me contou da época que o meu avô fez uma procissão ao templo de Kannon (Deusa da Misericórdia) em Asakusa, Tóquio. Acompanhada pelos seus discipulos de Jujitsu cantando o “Kiyari” (uma canção tradicional dos bombeiros, etc), o meu avô Fukuda emoldurou um juramento na parede que dizia: “Eu reconheço que se alguem um dia me superar [no Jujitsu], eu deverei assim remover este juramento”. Um pouco depois que escutei esta história, fui para Asakusa e encontrei ainda lá a placa de meu avô na parede, mesmo quando ela já estava escura com fuligem e o seu nome muito pouco dicernível.

Keiko Fukuda: "Seja gentil, bondoso e belo, mas também firme e forte, tanto mentalmente como fisicamente"

Keiko Fukuda: “Seja gentil, bondoso e belo, mas também firme e forte, tanto mentalmente como fisicamente”

Nos meus dias de treino na Kodokan, minha mãe decidiu erguer um monumento de pedra para meu avô perto de onde ele nasceu, na Prefeitura Saitama, e ela fez um pedido ao Shihan Kano para compor a dedicação a ser gravada no monumento. Ele muito graciosamente aceitou o pedido, mas ele descobriu que era uma tarefa muito mais difícil que ele havia antecipado. Minha mãe fez repetidas visitas a Kodokan e ao Shinan Kano para discutir o projeto antes que a dedicatória estivesse completa, mas como ele era uma pessoa muito ocupada, ele frequentemente teve que escrever a minha mãe para remarcar as reuniões. Minha família preservou muitas destas cartas que o Shihan Kano nos escreveu, desta época. Estas cartas claramente são um testemunho do respeito permanente e profundo que ele mantinha pelo meu avô, que meu coração se enche de emoção somente em lembrar disso. Seus muitos compromissos oficiais conspiraram para restringir seu tempo livre de modo que era bastante difícil encontrá-lo pessoalmente, mas ainda agora eu desejo que eu tivesse aproveitado um pouco mais de tempo com ele para falar de meu avô.

Um dia, o Shihan Kano anunciou que ele estava considerando enviar alguém para promover o judô pelo mundo. Haviam três ou quatro de nós na Seção Feminina da Kodokan que ficaram bastante motivadas sobre a chance de ensinar judô em outros países. Entretanto, o treino fatigante que era exigido para os instrutores cobrou seu pedágio na forma de lesões e outras causas reduziram nosso número uma por uma, até que somente restou eu.

Foi em meu terceiro ano na Kodokan que Shihan Kano de repente faleceu, em alto mar, quando estava regressando para casa após a reunião do Comitê Olimpico no Cairo, Egito, na véspera de o navio adentrar o porto de Yokohama. A morte deste grande homem foi um sopro devastante tanto para o Judô como para mim, pessoalmente.

Eu tenho sido muito afortunada por ter tido a oportunidade de viajar para muitos lugares e conhecer incontáveis praticantes de Judô com o passar dos anos. Hoje, em meu dojo, há estudantes da Noruega, Franca, Austrália, Inglaterra e Canada que vem para treinar juntos e aprofundar os laços de amizade. Eu posso ouvir a voz do Shihan Kano me encorajando agora para alcançar mais pessoas pelo mundo e trabalhar em harmonia com todas elas.

Eu tenho tido uma maravilhosa jornada de vida, lado a lado com o Judô, vivendo os ensinamentos do Shihan Kano e os tendo como suporte. Eu devo ser eternamente grata a ele por ele me colocar no mundo do Judô, e pelas suas palavras motivacionais que me guiaram por todos estes anos.

Com os pensamentos do meu avô sorrindo para mim por baixo da urze, agora descanso a minha caneta.

– Keiko Fukuda