Jigoro Kano não foi apenas o fundador do Judô, como já destacamos muitas vezes neste site, mas também, foi um educador, teve cargos políticos durante sua carreira e trabalhou por muitos anos como membro do Comitê Olímpico Internacional, tendo viajado todo o mundo por conta do seu trabalho no COI.

Em suas viagens, era sempre solicitado para dar palestras. Falar sobre o Judô e sobre educação. O texto abaixo é uma transcrição de uma palestra que Jigoro Kano deu em Atenas, Grécia, na Parnassus Society. Esta palestra ocorreu no dia 5 de junho de 1934. (Esta transcrição foi republicada no Jornal of Combative Sports em 2001. Tradução ao português feita pelo CTJ).

Jigoro Kano - Educador, pensador e pai da educação física japonesa
Jigoro Kano – Educador, pensador e pai da educação física japonesa

Princípios do judô e suas aplicações em todas as fases da atividade humana (Jigoro Kano)

Desde que comecei a trabalhar em público, estou envolvido com educação, durante algum tempo, ocupando o cargo de diretor do Departamento de Educação Primária e Secundária no Japão e por 24 anos sendo o diretor do Colégio Superior Normal de Tóquio. .

Como é natural para um homem dessa carreira, tive que responder a muitas perguntas como as seguintes:

  1. O uso da religião como meio de cultura moral ninguém duvida. Mas, como a moral é ensinada na religião não pela razão, mas por “fé” ou crença, pode haver pessoas diferentes tendo crenças diferentes. Como alguém pode decidir qual crença é correta e qual não é? Nesta fase do esclarecimento devemos resolver esta questão de uma maneira com a qual todos concordem. Como você resolve esta questão?
  2. Desde milhares de anos, pensadores de diferentes países avançaram centenas de visões diferentes em relação à moral. Alguns chegaram a certas conclusões através de seu próprio processo de raciocínio, enquanto outros vieram advogar algo diferente também através de seu modo de pensar. Esta é a razão pela qual existem tantos sistemas éticos diferentes. Eles têm disputado diferentes bandeiras desde os tempos de Platão e Aristóteles, no Ocidente, e de Lao-tsé e Confúcio, no Oriente. Parece não haver fim para as disputas. Como você reconcilia essas visões diferentes?
  3. Todos nós respeitamos a tradição e ninguém pensaria levianamente na importância da tradição no ensino da moral. Mas como podemos provar que a moral ensinada pela tradição é sempre correta e nunca precisa de alteração? Os fatos não provam que alguns dos ensinamentos da moralidade considerados mais importantes em um certo estágio do progresso da humanidade diminuiriam em importância posteriormente? Os diferentes países não diferem em suas tradições? Existe algum teste confiável para julgar a validade de tal tradição, para que possamos manter aqueles que consideramos válidos?

Freqüentemente confrontado com perguntas como essas, ocorreu-me que os princípios do judô que venho estudando desde minha juventudo podem resolver da melhor maneira essas questões difíceis. Por isso, tentei aplicar esses princípios à solução de todos os diferentes problemas que tive que encontrar e, em nenhum caso, encontrei dificuldade em aplicá-los.

Esses princípios do judô são:

1º. Qualquer que seja o objeto, a melhor maneira de alcançá-lo será o uso máximo ou mais eficiente da energia mental e física direcionada a esse objetivo.

2 º . “A harmonia e o progresso de um corpo, consistindo de indivíduos diferentes, por menor ou maior número que seja, podem ser melhor mantidos e alcançados por auxílio e concessão mútuos.”

Se eu tivesse tempo, e a natureza dessa Sociedade Parnassus fosse tal que me permitisse explicar o processo pelo qual eu havia chegado às minhas conclusões, seria muito interessante e fácil para vocês entenderem a real importância do que eu vou dizer. No entanto, deixando essa parte para uma palestra a ser dada em outra ocasião, passarei a mostrar a vocês como aplicar esses princípios a diferentes fases da Atividade Humana.

Nos tempos feudais no Japão, havia muitos exercícios marciais, como esgrima, arco e flecha, uso de lanças etc. Entre eles estava um chamado Jiu-jitsu, que consistia principalmente nas diferentes maneiras de lutar sem armas, embora ocasionalmente algumas armas fossem usadas. Na minha juventude, estudei duas escolas diferentes desta arte sob orientação de três mestres eminentes da época. Além disso, recebi instruções de muitos outros mestres representando outras escolas. Mas o Jiu-jitsu originalmente não era uma aplicação para questionar os princípios da ciência, mas simplesmente um grupo de diferentes métodos de ataque e defesa criados por mestres diferentes, uma escola representando um grupo de métodos criados por um mestre e outras escolas representando os métodos de outros. Sendo assim, não havia um princípio fundamental pelo qual testar a validade desses métodos.

Isso me levou a estudar esse assunto com muita seriedade, e finalmente cheguei a conceber um princípio onipresente, que é: “Qualquer que seja o objeto, ele pode ser melhor alcançado com o uso mais alto ou o mais eficiente da energia mental e física direcionados para esse fim ou objetivo.”

Depois, estudei de novo, até onde minha pesquisa pode alcançar, todos os métodos de ataque e defesa ensinados por diferentes mestres antes de minha época. Descobri então que havia muitos métodos que poderiam resistir a esse teste, enquanto muitos outros não. Preservando aqueles que eu considerava válidos e adicionando muitos outros do meu próprio estilo, onde me senti confiante que resistiriam ao teste, organizei em 1882 meu próprio sistema de ataque e defesa. Judô é o nome desse princípio fundamental, bem como o nome para esse princípio, juntamente com a sua aplicação, enquanto Jiu-jitsu é o nome de um grupo de métodos diferentes que não se baseiam em tal princípio. Chamei a instituição em que esse princípio é estudado e sua aplicação ensinada de Kodokan, que literalmente significa “uma instituição para estudar o caminho”.

Essa nova tentativa foi muito bem-sucedida. Atualmente, no Japão quase ninguém estuda os métodos antigos, o judô é ensinado em quase todas as escolas acima do ensino médio, bem como no exército, marinha e polícia, e o nome Jiu-jitsu foi quase substituído pelo novo nome Judô.

Esse sucesso na aplicação do princípio de eficiência máxima ao método de competição levou-me a considerar aconselhável fazer uma tentativa semelhante em relação à educação física.

Ao lidar com esse assunto, antes de tudo, devo esclarecer qual é o objetivo da educação física. Acredito que o objetivo da educação física deve incluir pelo menos os quatro itens a seguir: Saúde, Força, Utilidade e Treinamento Espiritual, incluindo as fases Intelectual, Moral e Estética.

Ninguém discordaria desta afirmação, mas desejo chamar sua atenção especial para o fato de que ninguém, nem mesmo os especialistas em educação física, parecem estudar a importância respectiva desses quatro itens. Não são muitos os promotores da educação física que se concentram demais em força e habilidade? Os professores de ginástica não prestam atenção quase exclusivamente aos órgãos interiores e ao desenvolvimento harmonioso do corpo?

As pessoas naturalmente caem nestes erros porque o objetivo da educação física não está claramente estabelecido e a inter-relação desses quatro itens não é seriamente estudada. Isso acontece porque o princípio de máxima eficiência ainda não é universalmente reconhecido e poucas pessoas parecem estudar esse assunto do ponto de vista desse princípio.

Vou agora falar sobre a aplicação deste princípio ao treinamento moral e intelectual.

De maneira semelhante à que eu disse em relação aos quatro itens da educação física, a inter-relação da cultura intelectual e moral, bem como esses dois com a cultura física, deve ser objeto de um estudo sério. No entanto, não apenas as pessoas em geral, mas também os educadores em geral são bastante indiferentes a isso. Na cultura intelectual, a rigor, a aquisição de conhecimento e o cultivo do poder intelectual estão tão correlacionados que não podem ser tratados separadamente. Ainda assim, o cultivo do poder do raciocínio e do julgamento e a mera aquisição de conhecimento podem ser vistos sob diferentes pontos de vista e a participação que eles devem ter na cultura intelectual deve ser especialmente estudada.

A cultura moral também inclui vários itens, e a inter-relação e a importância relativa desses itens devem ser cuidadosamente consideradas.

Antes de tudo, a cultura moral deve ser perseguida do lado intelectual, permitindo que um homem saiba o que é certo e o que está errado e também permitindo que ele raciocine e decida isso mesmo em circunstâncias complicadas. Ao mesmo tempo, o cultivo do poder emocional e volitivo, bem como a importância de formar bons hábitos, não devem ser esquecidos. Mas muito poucas pessoas parecem estudar essas coisas seriamente. Creio que isso também se deve à falta de reconhecimento do Princípio da máxima eficiência.

A cultura, seja ela física, intelectual ou moral, só pode ser adquirida adequadamente quando é dada a devida consideração à importância relativa e à correlação dos diferentes itens incluídos nessa cultura.

Vou agora dar um exemplo muito simples de como a maioria das pessoas está em sua vida cotidiana indiferente a princípio tão importante. Sempre que alguém tiver que ler um livro, revista ou jornal, deve selecionar dentre os que são considerados mais proveitosos para ler no momento. Mas a maioria das pessoas é muito indiferente a esses temas.

O mesmo pode ser dito em relação à dieta, roupas e moradia, e à escolha das coisas que compramos, nas transações empresariais, enfim, em todas as transações diárias da vida. Somente através do entendimento correto e da aplicação correta desse princípio, é possível tornar o corpo forte, saudável e útil. Pode-se tornar uma pessoa de alta posição moral e intelectual. Pode-se acumular riqueza, suficiente não apenas para ser feliz, mas também para poder ajudar os outros e empregarpara o bem da sociedade. Somente pessoas que são leais ao nosso princípio podem se tornar tais homens.

Portanto, se esse princípio é aplicável a todas as fases da atividade humana, o mesmo deve ser verdadeiro em relação à atividade de um grupo de homens, seja ele pequeno, como no caso de um grupo de poucas pessoas ou grande número de pessoas. como uma nação com uma grande população. Mas, para que um grupo de homens atue como indivíduo, este grupo deve ser bem organizado, de modo que cada membro do grupo atue em harmonia um com o outro. Essa harmonia só pode ser alcançada e mantida pela ajuda e concessão mútuas, levando ao bem-estar e benefício mútuos. Essa ajuda e concessão mútuas são, portanto, outro princípio fundamental do judô, que é muito importante para a formação e aperfeiçoamento da vida social. Não poderia, então, aplicar esse mesmo princípio de maneira semelhante às relações internacionais?

Concluo minha palestra citando uma parte do meu discurso que fiz em Madri no ano passado, por ocasião da Reunião da União Interparlamentar. Felizmente, o ideal da vida internacional não difere muito entre os povos civilizados, mas quando alguém nos pergunta o que há no fundo para fazer com que pessoas diferentes tenham um ideal semelhante, talvez fique confuso. O ideal moral da religião que tem a crença como pano de fundo não pode explicá-la, pois não há razão para que todas as crenças devam coincidir. Então, diferentes sistemas de filosofia podem ser considerados a força determinante de tal coincidência? Não pode ser procurado na filosofia, porque esses sistemas filosóficos permanecem distantes um do outro e nunca podem ser reconciliados.

Então, qual é a verdadeira força determinante dessa coincidência?

A força determinante está nisso. As pessoas civilizadas, vivendo em sociedade, nem sonham em abandonar a vida social e viver totalmente isoladas de outras pessoas. Enquanto uma pessoa desejar ser membro da comunidade, ela deve considerar seu dever manter a sociedade e fazer sua parte para impedir sua desintegração. Novamente, enquanto um homem vive na sociedade, ele próprio é beneficiado por seu progresso, enquanto, por outro lado, se a sociedade se deteriora, ele perde o que de outra forma poderia obter. Quando qualquer membro da sociedade é conscientizado desses fatos, ele será automaticamente levado a procurar manter e melhorar nossa vida social. Para manter a vida social, cada membro individual deve saber como se abster da conduta egoísta e deve conceder e ajudar os outros sempre que necessário para esse fim. Ao mesmo tempo, é preciso esforçar-se ao máximo para servir a sociedade, lembrando-se também de cuidar de si mesmo, desde que isso não entre em conflito com os interesses dos outros e da sociedade em geral. Esse benefício da sociedade e de si mesmo pode ser alcançado da melhor maneira possível ou pelo uso mais eficiente da energia física e mental nessa direção. Em suma, o uso mais alto ou o mais eficiente da energia mental e física para atingir o seu objetivo, por um lado, e a ajuda e concessão mútuas, visando o bem-estar e o benefício mútuos, por outro, são os dois grandes fatores determinantes da harmonia social e progresso. Conscientemente ou não, as pessoas civilizadas estão sendo lideradas por esses fatores. O fato de as pessoas agora falarem tanto de eficiência e gestão científica, o fato de a Liga das Nações ter sido formada, e que a segurança e o desarmamento hoje em dia se tornaram assuntos destacados, tudo isso mostra que esses fatores devem ser cuidadosamente estudados e seu verdadeiro espírito proclamado para o mundo inteiro.