A prática de uchikomi é uma prática bastante comum em qualquer escola de Judô ao redor do mundo. Sempre haverá um momento da aula em que estaremos repetindo o movimento de alguma técnica, muitas e muitas vezes, para a princípio aprimorar nossas habilidades e a execução das técnicas. Em outro post, inclusive, descrevemos os diversos tipos de uchikomi que existem para fazer do treino um treino mais diversificado e criativo.

Entretanto, mesmo que algumas práticas de exercícios sejam já uma espécie de tradição e todos do mundo executem, é importante lembrar que Jigoro Kano sempre buscou se basear na ciência do movimento e na ciência dos esportes para desenvolver o Judô. Portanto, nada mais justo que buscar também uma reflexão crítica e científica do que se faz atualmente nas aulas de Judô para que elas sigam o princípio do Zeiryoku Zenyo. Devemos através dos treinos proporcionar o melhor resultado ao nossos alunos com o mínimo de esforço, o mínimo de lesões, etc. Por isso, ao menos no que diz respeito a Confederação Brasileira de Judô, para se atingir o nível de Shodan é fundamental passar por um curso básico de biomecânica e outros elementos da ciência do esporte para podermos sempre atualizar nossas práticas e nossas pedagogias de acordo com o Seiryoku Zenyom orientado pela ciência.

Treino de Uchikomi - Uma prática comum nas aulas de Judô
Treino de Uchikomi – Uma prática comum nas aulas de Judô

O texto abaixo, escrito por Elie A. Morrell, Hachidan pela USJA, é um bom exemplo desta reflexão crítica sobre a prática do uchikomi e de certas práticas que por muitos são repetidas sem pensar nos valores e vantagens (se houver) reais destas práticas. Confiram o texto abaixo e comentem o que pensam a respeito do valor e da utilidade da prática do uchikomi nas aulas de Judô. (agradecemos especialmente ao Jefferson de Almeida Ramalho, da Equipe Helio Fernando de Judô, pela tradução do texto. Revisão da tradução feita por Felipe R., JudoCTJ).

O valor do Uchikomi para o desenvolvimento das habilidades do Judô (Elie A. Morrell)

Pouco foi escrito sobre o Uchikomi em relação aos seus benefícios ou a falta deles. Provavelmente, isso se deve ao fato de a maioria da comunidade de judô aceitar sua prática como um complemento benéfico para o desenvolvimento da habilidade geral do judô.

A crença comum da comunidade de judô é simplesmente que a prática de Uchikomi (anteriormente chamada Butsukari) melhora as habilidades das técnicas de projeção. Nas últimas décadas os estudiosos do esporte apontaram claramente que sendo o judô uma habilidade motora dinâmica, praticar a(s) habilidade(s) em partes (compartimentadas) não melhora a aquisição dessas habilidades. Isso significa simplesmente que para melhorar as habilidades de arremessos estes devem ser executados de modo completo na prática, em um ambiente que se assemelha o máximo possível do ambiente da prática de randori e shiai. A prática que ocorre nos treinos atuais que utilizam o Uchikomi envolve a aplicação de arremessos até o ponto culminante, ou o que é comumente conhecido como kake. Os instrutores normalmente fazem com que os alunos executem o Uchikomi por um número especificado de vezes antes de executar a técnica total.

Uchikomi - Por Kosei Inoue
Uchikomi – Por Kosei Inoue

O termo Uchikomi é derivado do verbo japonês Utsu, que significa “bater contra”. Muitos instrutores interpretam erroneamente a palavra Uchikomi como “encaixar”.

É interessante notar, com base em minha experiência pessoal, que a maioria dos instrutores fará com que seus alunos pratiquem as técnicas de projeção para frente, o que realmente exige um encaixe de uma forma ou de outra eRARAMENTE se pratica Uchikomi em qualquer outra direção. Certamente é verdade que existem algumas técnicas que são compatíveis com Uchikomi em outras direções além da frente.

Parece razoável concluir que a prática de Uchikomi poderia ser utilizada para todos as técnicas. Infelizmente esse não é o caso, e muitos instrutores não estão cientes disso. Alguns exemplos em que uma tentativa de aplicar Uchikomi seria estranha ou impossível incluiriam técnicas como Okuri Ashi Barai, Yoko Otoshi, Tomoe Nage, Tani Otoshi, Uki Otoshi, Uki Waza, Yoko Wakare, Sumi Otoshi e Yoko Gake, para citar algumas. Então, por que não se avisa aos alunos quais são as limitações de Uchikomi em relação às técnicas onde é aplicável, além do fato de que ele não tem valor como ferramenta para o desenvolvimento das habilidades de judô? Acredito que é porque isso não aparece em nenhum lugar da literatura do judô.

Se você, como instrutor de judô e aceita o fato de que a prática de Uchikomi não tem valor para o desenvolvimento de habilidades, então alternativas devem ser utilizadas. Quais são estas alternativas? A resposta é DRILLS! [Nota de revisão CTJ: Não iremos aqui traduzir a palavra em inglês drill por ela já ser bem conhecida por praticantes de Judô e Jiu-Jitsu Brasileiro no Brasil. Interessante notar que estritamente falando, uchikomi é uma forma de fazer drills. Porém, nos parece claro que o autor está aqui se referindo a uma forma muito mais ampla e criativa de desenvolvimento de exercícios para o Judô, que vai além das formas básicas e tradicionais de se realizar uchikomi.] Esta é uma área extremamente negligenciada por muitos instrutores. Por mais importantes que sejam os drills, eles não substituem Randori e Shiai. Randori é o principal bloco de construção do judô. No entanto, Randori e Shiai devem ser complementados com drills propriamente desenhados. É consenso dos instrutores e professores de alto nível da Kodokan que a prioridade no treinamento deve ser dada a Randori. Randori controlado é em si mesmo uma forma de drill.

Drills rigidamente projetados são necessários para substituir a forma arcaica de Uchikomi agora praticada na maioria dos Dojos. Qualquer que seja o tipo de drill que um instrutor pratique com seus alunos, a
projeção DEVE sempre ser concluída! Um segundo requisito importante para realizar drills é que eles devem ser praticados com os dois praticantes em movimento. Quando esses dois requisitos não são atendidos, a essência de Uchikomi desaparece. Dito de forma simples, o drill não deve ser considerado como uchikomi em movimento.

Com a introdução do movimento e a conclusão da projeção sendo praticadas, a complexidade do drill aumenta substancialmente. Novas variáveis praticando essa movimentação agora estão presentes e não existem para o caso estático de Uchikomi quando a projeção não é concluída. As novas variáveis significativas incluem o tempo (a rapidez com que os atletas estão se movendo), a posição dos pés de Uke no ponto de kake, o timing e a postura. Uma das características mais importantes dos drills é que nenhuma direção de movimento prescrita deve ser um requisito do drill. O instrutor pode ou não solicitar que uma técnica específica seja tentada. Por fim, o Uke deve permitir que Tori complete o arremesso.

Se é permitido ao Uke tentar evitar ser jogado nesses exercícios de drills, então os praticantes atingiram o nível de randori. Este deve ser apenas o objetivo final do drill. O primeiro nível do drill deve fazer com que o Uke seja totalmente passivo e não restrinja o tori de maneira alguma quando se tenta um arremesso. Após a prática substancial do primeiro nível, o Uke poderia então oferecer vários graus de resistência à tentativa de arremesso pelos Tori até que o nível randori fosse atingido.

O objetivo do instrutor na utilização da abordagem anterior é fazer com que os alunos atinjam um nível de experiência em judô comparável ao ambiente encontrado em randori e, em particular, em shiai. Este objetivo NÃO PODE ser alcançado somente pela prática de Uchikomi! A prática de Uchikomi será, sem dúvida, um método inflexível de treinamento usado pela maioria dos instrutores por algum tempo. Isso é um tanto infeliz. O pensamento moderno e as mudanças de método estão contra os métodos tradicionais de prática que são utilizados há mais de um século. No caso do judô, as práticas tradicionais serão muito difíceis de mudar. Felizmente, existem hoje algumas pessoas envolvidas no judô com uma mente aberta que abandonaram o uso de Uchikomi em seus programas de ensino. Com o passar do tempo, certamente podemos esperar que o número desses indivíduos aumente em número. Eu não uso a prática de Uchikomi há quase quarenta anos.

No final dos anos 60, tive a sorte de comprar um texto de judô escrito por G. R. Gleeson intitulado “Judo for the West“. Este é um livro que li várias vezes. O material deste livro ajudou a mudar significativamente minha perspectiva de aprendizado e ensino sobre o esporte do judô. Este livro deve ser uma leitura altamente recomendada para todos os instrutores de judô. G. R. Gleeson afirma que os praticantes de judô não podem se contentar em descansar em suas tradições e dogmas. Ele afirma que o aprendizado do judô deve ser derivado das próprias projeções e não de práticas inventadas artificialmente, como Uchikomi.

Gleeson é crítico da prática de Uchikomi em três áreas principais e que são brevemente discutidas a seguir:

  1. Rotinas fixas: esses são padrões de movimento imutáveis. Os padrões habituais de movimento resultam da prática de Uchikomi. No entanto, o judô é a prática de uma habilidade e, portanto, hábito e habilidade não são sinônimos. Gleeson sustenta ainda que não existem padrões comuns entre a repetição estática de um arremesso e o desempenho dinâmico de um arremesso onde os jogadores estão em movimento.
  2. Como a conclusão de um movimento de habilidade afeta a melhoria da habilidade: Raramente, na prática de Uchikomi, o arremesso é concluído. Portanto, o jogador nunca sabe realmente se está fazendo isso corretamente e não é capaz de testar a eficácia do arremesso em questão. Se a projeção foi concluída, o feedback deve ser considerado. Sem movimento dos atletas, não finalização da projeção e nenhuma resistência do Uke, é opinião de Gleeson que o feedback negativo resulta da prática de Uchikomi. A conclusão alcançada aqui é que Uchikomi não apenas não ajudará a melhorar a habilidade de arremesso, como também impedirá qualquer melhoria de habilidade.
  3. Diferenças de padrão rítmico no movimento estático e dinâmico: O não movimento do Uke e os movimentos de entrada e saída do Tori resultam em um ritmo regular de batida dos atletas. Como então se pode esperar que a transferência ocorra? Ou seja, o ambiente necessário para randori e shiai. A transferência é inexistente! Os padrões de movimento associados a randori e competição são extremamente complexos e contêm variações infinitas de movimento por ambos os atletas.

G. R. Glesson vai ao ponto de dizer que a prática de Uchikomi pode ajudar a aumentar a resistência e a força, mas seu valor como método para melhorar a habilidade de projeção é praticamente nulo!