Em um post anterior, falamos um pouco sobre o que é conhecido como Kosen Judo – os especialistas em luta de chão do Judô. Entretanto, é bastante comum ver este tema regressar em grupos de discussão de jiu-jitsu e até mesmo de Judô, alguns associando o kosen judô como a origem do jiu-jitsu brasileiro e outros descrevendo o kosen judô como um estilo diferente de judô. A ideia deste post é novamente falar um pouco sobre a origem do kosen judô e discutir a sua relação entre o jiu-jitsu e o judô como conhecemos atualmente.
Origem do Kosen Judô
Muita gente afirma que Kosen Judô é um estilo de Judô diferente do Judô Kodokan. Isso parece nao fazer sentido, exceto se fizer sentido dizer que o Judô Dai Nippon Butoku Kai foi um estilo diferente do Judô Kodokan. Por isso vale a pena relembrar as origens do que hoje chamamos de kosen judô.
Não é que existam estilos diferentes de Judô, como se cada estilo fosse uma arte-marcial ou esporte diferente. O que existem são estilos diferentes de se ensinar a mesma arte. E formas diferentes de testá-la. E foi a partir de diferentes métodos de testes (regras competitivas) que se nasceram outras formas de ensino. Algumas resolveram por questões diversas que não vem ao caso neste texto, serem chamadas por outros nomes (jiu-jitsu brasileiro, como explicamos aqui na série sobre a história do jiu-jitsu) e outras resolveram manter o mesmo nome.
Dessa forma, assim como existia o Judô ensinado na Kodokan, existia o Judô ensinado na Dai Nippon Butoku Kai, e existia o Judô ensinado nas escolas técnicas japonesas, conhecidas como Koto Senmon Gakko (abreviado: Kosen).
Estas escolas técnicas organizavam campeonatos anuais (Kosen Taikai) seguindo as regras da Kodokan e Dai Nippon Butoku Kai, com uma pequena diferença: se permitia o hikikomi (puxar para a guarda) e se permitia o newaza por tempo indefinido, além do empate. As competições eram por equipe. Assim, o método de ensino foi adaptado para este tipo de regras. A arte é a mesma, o conjunto de técnicas treinadas exatamente o mesmo. Puro Judô. Kosen Judô portanto se refere apenas a variação de regras competitivas aplicadas ao Judô, que é uma arte marcial única, não subdividida em estilos.
Regras dos torneios de Judô Kosen
As regras dos torneios kosen permitiam algumas estratégias bastante interessantes. Como o torneio era por equipe, o vencedor de uma luta deveria lutar com o próximo lutador da equipe, e em caso de empate, os dois deveriam sair. Dessa forma, uma equipe poderia amarrar a luta contra o lutador mais forte da outra, eliminando-o por empate e permitindo assim uma estratégia vitoriosa. A forma menos arriscada de eliminar um oponente por empate era através da luta em newaza. Além disso, o newaza também oferece mais chances a um lutador pequeno vencer por finalização um lutador mais pesado. Por conta deste modelo de competição, as escolas decidiam enfatizar o treinamento um pouco mais em newaza do que em tachi waza.
Jigoro Kano nesta época não se via muito satisfeito com as regras adotadas por estes torneios, afinal, Jigoro Kano era explicitamente contra o ideia de ser o Judô apenas um esporte e contra a ideia de se formar pessoas apenas focadas em vencer competições. E parecia que as escolas que treinavam para os torneios kosen estavam formando apenas isso: judocas esportistas. E como foi explicado em outro post, o judô esportivo é um judô incompleto, limitado, Kyogi Judô. Por isso, entre 1925 e 1929, uma série de mudanças nas regras competitivas do judô foram realizadas, de modo a oferecer um judô que fosse balanceado entre 70% tachi waza e 30% newaza, além de não ser mais permitido o empate, onde a vitória seria decidida pela decisão dos juízes (yusei gachi).
Atualmente este tipo de torneio ocorrem ativamente entre as sete universidades imperiais (Toquio, Kyoto, Tohoku, Kyushu, Hokkaido, Osaka e Nagoia), e as competições são conhecidas como Nanatei Judô.
A Universidade de Kyoto historicamente tem sido uma das mais bem sucedidas nestes tipos de torneios. Em 66 edições dos torneios Kosen-Nanatei Judô, a Universidade de Kyoto venceu 22 vezes e obteve 3 empates. Uma aula de Judô padrão na Universidade de Kyoto tem 3 horas de duração: 30 minutos de aquecimento e uchikomi, 45 minutos de randori, puro tachi waza e o restante da clase, 1:45 de puro randori newaza.
O vídeo abaixo (em inglês) é um mini-documentário sobre o treino de judô na Universidade de Kyoto:
Kosen Judô como origem do Jiu-Jitsu Brasileiro?
É bastante comum especular que a origem do jiu-jitsu brasileiro tenha sido o Judô treinado nas escolas que participavam dos torneios Kosen. Entretanto, não há relatos de que muitos dos japoneses que vieram ao Brasil, como Maeda e os irmãos Ono, eram oriundos destas escolas. Além disso, as mudanças mais significativas nas regras do Judô ocorreram após 1925, bem depois da chegada de muitos japoneses ao Brasil. Assim, talvez seja bastante inacurado dizer que foi o Kosen Judô que moldou o jiu-jitsu brasileiro.
Como descrito no início deste post, em geral são as formas de se testar uma arte que molda a forma como ela é ensinada e praticada. E no Brasil das décadas de 1910 até quem sabe 1960, haviam grandes desafios entre luta-livre brasileira e jiu-jitsu brasileiro, luta-livre e capoeira, jiu-jitsu brasileiro e capoeira, e desafios no estilo vale-tudo. Talvez a melhor especulação seja dizer que o Judô Kodokan ensinado no Brasil aos Gracies, Fadda e outros tenha se adaptado e sofrido grande influência da Luta-Livre Brasileira, arte esta que possuia atletas incríveis e extremamente fortes e que venciam suas lutas por imobilização ou finalização através de chaves e estrangulamentos. Mas esta especulação é tema para outro post (deixe seu comentário sobre o que pensa a respeito deste tema).
É importante observar que praticamente todas as técnicas existentes no jiu-jitsu atual já se observavam nos torneios Kosen. Inclusive, é possível afirmar que o triângulo de perna (sankaku-jime) foi uma técnica inventada por um judoca que era instrutor das escolas técnicas japonesas, e portanto, treinava seus alunos para os torneios kosen. Confira mais sobre este tema em nosso post sobre o Sensei Tsunetane Oda, o inventor do triângulo.
Uma observação histórica interessante: os principais e mais fortes oponentes da família Gracie e também da Kodokan em desafios bem conhecidos tem origem na mesma arte: a luta livre (seja a luta livre brasileira, seja a luta inglesa-americana em seus mais diferentes estilos de catch as catch can wrestling).
Atletas que foram destaques nos torneios Kosen – Nanatei Judô
Um atleta que foi campeão no torneio Nanatei Judô em 1992, e que logo depois entrou para o mundo do vale tudo e encarou nomes como Jean Jacques Machado e Rickson Gracie foi Yuki Nakai.
A luta contra Rickson foi uma verdadeira luta entre samurais. Nakai estava totalmente lesionado na face pelas lutas anteriores e Rickson respeitou e lutou apenas no chão, não golpeando sobre as lesões de Nakai. Em 1996 Nakai foi para torneios de jiujitsu, venceu o panamericano na faixa marrom em 1997 e nesse ano ganhou a faixa preta de jiujitsu (Carlos Gracie Jr.), sendo o primeiro japonês a ter uma faixa preta de BJJ, Jiu-Jitsu Brasileiro.
Outro famoso atleta que venceu alguns torneios nanatai de Judô, e que posteriormente obteve a faixa preta de jiu-jitsu através de Yuki Nakai é o Koji Komuro (Komlock). Komuro já escreveu livros sobre newaza de Judô e já produziu também dvd’s interessantíssimos sobre suas técnicas. Em seu livro ele não se considera um atleta de BJJ, mas sim, um praticante normal de Judô que apenas treina mais e com mais dedicação o que a maioria dos judocas ignoram do currículum. Nos próximos posts traremos mais detalhes sobre Nakai e Koji Komuro e como atualmente são considerados grandes experts de newaza de Judô, sem fazer feio a atletas de alto rendimento de jiu-jitsu brasileiro.
Enfim, isso é Kosen Judô: nada mais do que o mesmo judô tradicional de sempre. Exceto que, paradoxamente, quando Jigoro Kano pensava que as regras Kosen limitavam o Judô, hoje temos nas regras Kosen mais liberdade, visto que não existe Judô mais limitado que o Judô que segue as regras da Federação Internacional de Judô. Afinal, nas regras atuais, muitas das técnicas clássicas e altamente efetivas como te-guruma, kibisu gaeshi, kuchiki taoshi, além da aplicação de katame waza como tachi waza (durante a luta em pé) entre outras restrições, somente fazem mais real o pesadelo de Jigoro Kano de ver seu Judô ser cada vez mais castrado.
O que pensa sobre esta discussão? E afinal, aprendeu definitivamente o que é o Kosen Judô?
Deixe sua opinião nos comentários abaixo!! E para finalizar este post, um belíssimo vídeo produzido pela Universidade de Kyoto:
muito bom texto, comprova o que eu havia pensado … vc tem razão ao dizer que o bjj foi muito influenciado pela luta livre, pois é fato que vários deles até treinaram luta livre nos anos 70-80 etc.. sobre J.Kano, penso que as regras podem ter limitado a luta na prática, porém o porque disso ele explicou que era para evitar que o Judo se tornasse apenas um esporte como hj, e isso tiou, castrou de certa forma ao meu modo de ver, toda a filosofia e o aprimoramento moral e espiritual de um praticante, como ele disse, hj focam mais em vitórias em competições.
o judo tradicional e mais completo que o judo de compentição assim como o jiujitsu tradicional e mais completo que brasilian jiujitsu so do chão na verdade vence quem estiver melhor preparado ja vi lutador de luta agarrada tentar ataca o oponente e ser vencido com um soco so bem colacado levando a nocaute vice e versa damian maia lutador de jiujitsu no ufc foi vencido com um soco tentando agarra
É difícil de se falar em “tradicional” para o Judô, e muito menos para o Jiu-Jitsu.
Não há Judô tradicional. Há o Judô pré-segunda guerra e pós-segunda guerra. No judô pré-segunda guerra, temos um judô que não era regulado por organizações internacionais, e haviam competições e regras. Mas Kano estava vivo e pregava a discussão teórica do Judô, dentre outras coisas. Pós-segunda guerra temos um judô quase que totalmente competitivo, e que passou a ser regido por diversas associações e federações. Não há algo como “tradicional” em nenhuma das duas épocas, pois no pré-guerra, o Judô era tudo menos tradicional. Era moderno, inovador, estava se estabelecendo. E no pós-guerra, passou a ser um esporte olimpico, também moderno, adaptado a competições, etc.
Então nunca houve algo como Judô tradicional.
Jiu-Jitsu tradicional tampouco existiu. Antes do Judô, haviam milhares de estilos diferentes de jiu-jitsu. E todos foram morrendo. Não era interessante pro japão e muito menos pro seu povo. Jigoro Kano, ao tentar manter o mínimo de tradição e história, criou o Judô para isso. Por isso, se há algo como jiu-jitsu tradicional, este algo está dentro do Judô. E o Jiu-Jitsu Brasileiro é, como o robert Drysdale fala, o estilo brasileiro de judô criado mais ou menos nos anos de 1930… e que decidiu não ser chamado de Judô, mas sim de Jiu-Jitsu.
Abraços