Em novembro de 2020, a Federação Internacional de Judô vai comemorar o 40º aniversário do primeiro Campeonato Mundial Feminino, que aconteceu em Nova York, EUA, em 1980. Hoje e nas próximas semanas, estaremos publicando uma série de artigos ambos relacionados àquele evento histórico e celebrando a prática das mulheres em nosso esporte.

Defesa pessoal feminina em 1905 - © Michel Brousse collection
Defesa pessoal feminina em 1905 – © Michel Brousse collection

Hoje nosso esporte, o judô, é festejado como um modelo de igualdade e equidade entre homens e mulheres (mesmo número de categorias de peso e eventos, mesma premiação em dinheiro oferecida a homens e mulheres), mas o caminho aqui nem sempre foi fácil e mulheres tiveram que lutar por muito tempo para ter seus direitos reconhecidos. Estamos falando de um tempo passado aqui. No entanto, por ocasião da celebração do primeiro campeonato mundial feminino, parecia lógico homenagear aquelas mulheres que, muitas vezes, enfrentaram o frio face à proibição e que muitas vezes se levantaram contra a ordem estabelecida, em um mundo esportivo essencialmente masculino.

Neste primeiro artigo, voltaremos à história das pioneiras. Os nomes daquelas que contribuíram para o desenvolvimento do judô e que às vezes esquecemos, devem nos lembrar que é possível mudar as coisas, que é possível derrubar montanhas. Algumas fizeram isso e todos os judocas atuais, mulheres e homens, podem tirar o chapéu para elas. Em 2021, durante os Jogos Olímpicos de Tóquio, pela primeira vez na história, será realizado um torneio de equipes mistas. Esta é a melhor homenagem que podemos prestar às pioneiras do judô mundial.

O judô feminino é, portanto, o resultado de uma longa luta pela igualdade de direitos, que estava longe de ser óbvia no final do século 19, quando o judô foi criado. Como enfatizamos na introdução, hoje as campeãs femininas e vencedoras de medalhas estão em paridade exata com suas contrapartes masculinas. Seus títulos são apreciados por seu verdadeiro valor e muitas campeãs são o orgulho de países inteiros.

Jigoro Kano ministrando uma aula de judô feminino no Kodokan Joshi Bu - © Kodokan Institute
Jigoro Kano ministrando uma aula de judô feminino no Kodokan Joshi Bu – © Kodokan Institute

Para chegar lá, as mulheres tiveram que superar muitos obstáculos em um mundo onde as normas e valores masculinos dominam. Ao longo dessa jornada, elas puderam fazer valer seus direitos por meio do auto-sacrifício, com o apoio de seus pares, mas também de homens que entenderam que a divisão homem-mulher no esporte não tinha mais lugar. Bem no início da história do judô, é preciso imaginar sociedades dominadas por homens, cujas leis foram escritas e aplicadas por homens. O lugar ocupado pelas mulheres nos desportos de combate, as suas atitudes e os seus comportamentos não foram, portanto, vistos de forma positiva e foram diminuídos pelas regras e modelos sociais em vigor.

Um olhar atento sobre a evolução da prática feminina nos permite identificar dois períodos distintos. O primeioa estende-se do início do século 20 até a década de 1960, quando apenas uma pequena vaga era dada às mulheres. Naquela época, a liberdade de ação de uma mulher em um tatame era consideravelmente restrita. Na segunda fase, da década de 1970 até os dias atuais, o judô ganha uma dimensão cada vez mais internacional, cada vez mais as mulheres praticam e exigem igualdade no acesso aos campeonatos, o que podemos constatar hoje, tem sido uma campanha de sucesso.

Ao olharmos para um mundo que se aproximava do século XX, devemos lembrar que a prática do esporte e da educação física deveria tornar as mulheres mais bonitas e saudáveis, ao mesmo tempo que as preparava para cumprir seu futuro papel de mães. Muitos educadores concordavam que as mulheres não foram feitas para lutar, mas para procriar. Na época, as atitudes eram governadas pelos homens e o comportamento tinha que ser ‘adequado’. O exercício físico para as mulheres era definido com precisão pela medicina, que se opunha a qualquer atividade esportiva que pudesse ser prejudicial à função reprodutiva.

No entanto, enquanto os métodos de luta do Japão cresciam na Europa, um movimento fundamental emergia, que reabilitou o uso da força inteligente, oferecendo perspectivas às mulheres que pediam apenas a emancipação. As artes marciais, portanto, pareciam apelar às ‘novas mulheres’ que lutavam pelo reconhecimento de seus direitos. Deve-se ressaltar também que esse período coincidiu em muitos países com o início da luta pelo direito ao voto das mulheres.

Em Londres, por exemplo, as ‘ jujutsusuffragettes ‘, como às vezes eram chamadas , tendiam a aproveitar a eficácia das artes marciais e, quando participavam de demonstrações, não era incomum vê-las usando técnicas de combate, como uma arma de defesa, para enfrentar a polícia.

Kano Shihan explicando o Ju-no-Kata na escola feminina Shinagawa - © Kodokan Institute
Kano Shihan explicando o Ju-no-Kata na escola feminina Shinagawa – © Kodokan Institute

Edith Garrud e seu marido aprenderam jujutsu com um mestre japonês, Uyenishi-sensei. Ela começou ajudando seu marido e então em 1909 ela abriu seu próprio dojo e dirigiu um clube de defesa pessoal para sufragistas. Ela treinou um grupo de cerca de trinta mulheres. Depois dos protestos, algumass das alunas correram para a Sra. Garrud e esconderam seus cartazes sob o tatame onde treinaram.

Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, a esposa de Yamashita-sensei, o especialista que deu aulas ao presidente Roosevelt, reuniu toda a sua influência e posição para incentivar a participação das mulheres americanas no que o New York Times chamou em 1904, ‘a loucura da moda japonesa.’ Não era incomum ver Yamashita Fude na companhia de seu marido durante apresentações de autodefesa em Washington e rapidamente a imprensa transatlântica se interessou por essa nova moda que estava se desenvolvendo na alta sociedade. A defesa pessoal parecia, nessa época, reconhecida como um direito implícito. Mesmo assim, ativistas americanas, como suas colegas britânicas, aparentemente não exploraram as vantagens das técnicas japonesas para mudar a sociedade.

No Japão, onde nasceu o judô, a arte do combate era então privilégio exclusivamente masculino. No entanto, como no Ocidente, os exercícios de educação física para mulheres visavam melhorar a elegância e a saúde.

Kano Jigoro Shihan, que foi um homem de sua época, adotou o conceito de corpo feminino, definido pelas teorias científicas e médicas a que teve acesso. Ele, portanto, aderiu à ideia da diferença biológica e proibiu qualquer esforço excessivo. Muito rapidamente, entretanto, os arquivos do Kodokan mostram uma primeira entrada feminina, a Srta. Ashiya Sueko. Já em 1893, um ano após o advento do judô, Kano já ensinava judô para sua esposa, Sumako, e também para suas amigas. Porém, só em novembro de 1923 é que a educação regular para mulheres foi implementada. Um cronograma de treinamento de verão foi organizado em 1926 e, em novembro do mesmo ano, um programa oficial e uma seção dedicada às mulheres, mas o judô feminino foi então limitado à educação física e moral. A prática foi reduzida ao exercício de kata e randori , enquanto a competição era proibida.

Ozaki Katsuko, Ju no kata, Gifu, 1942 © Kindai Judo magazine
Ozaki Katsuko, Ju no kata, Gifu, 1942 © Kindai Judo magazine

Em 1933, um dojo foi reservado para a seção feminina do Kodokan. O Instrutor Chefe Uzawa Takashi relatou em seu discurso inaugural: “A resistência física, a constituição fisiológica e a psicologia das mulheres são diferentes das dos homens. Como se espera que as mulheres jovens se tornem mães, a prática de Seiryoku zen’yo kokumin taiiku no kata para melhorar a força física e resistência, necessária para quedas e randori, é essencial; caso contrário, eles não devem fazer esses exercícios. Peço especificamente às alunas que treinem racionalmente e evitem comer demais, pois a fadiga física pode causar lesões e doenças. O motivo pelo qual as mulheres não podem participar de competições é que isso as levaria a um excesso de treinamento e que ficariam obcecadas em vencer. Isso as colocaria em grande risco de doença ou, na pior das hipóteses, um acidente grave que poderia ter consequências devastadoras. Estamos muito preocupados com essas questões. “

Um ano antes, em 1932, a Sra. Ozaki Katsuko havia sido a primeira mulher a receber o título de faixa-preta, posto que foi confirmado pelo próprio Kano um ano depois.

Jigoro Kano ensinando Kata - © Kodokan Institute
Jigoro Kano ensinando Kata – © Kodokan Institute

À medida que o judô crescia cada vez mais e se enriquecia com as teorias de Kano, adquiria novas dimensões científicas e educacionais, enquanto o fundador do judô não poupava esforços para internacionalizar seu método. Kano, à frente de seu tempo, por meio de suas incessantes viagens ao exterior e graças ao envio de seus principais alunos por todo o planeta, organizou ele mesmo a divulgação do judô feminino.

Nos Estados Unidos, as pioneiras se tornaram embaixadoras do judô. Ruth Horan, então tocando em um grupo de música em Greenwich Village, descobriu o judô em 1951, enquanto assistia a um famoso programa de televisão, o ‘Arthur Godfrey Show’. Com o marido, ela decidiu fazer aulas. “Infelizmente, pode haver momentos em que estamos sozinhos e desprotegidos. Evitar problemas é o melhor uso do judô ”, disse ela. A defesa através do judô foi, portanto, apresentada como um serviço à comunidade.

As mulheres raramente vinham sozinhas para praticar. Todas eram esposas, filhas ou irmãs do judoca. Foi assim que Helen Carollo chegou ao judô, após uma manifestação pública. Em 1941, ela ingressou na Oakland Judo School. Em 1953, após obter a faixa preta, foi para o Japão e treinou por um ano em Tóquio. Em seu retorno, ela foi acompanhada por uma especialista japonês, a emissária do Kodokan, Fukuda Keiko.

Judô feminino no programa de TV Lucille Ball, 25 de fevereiro de 1963 (EUA) © USJF Archives
Judô feminino no programa de TV Lucille Ball, 25 de fevereiro de 1963 (EUA) © USJF Archives

A Sra. Fukuda era então a mulher de maior posição no mundo, sendo o 5º dan. Seu papel foi decisivo na disseminação dos métodos e valores do judô feminino Kodokan. Seu lema, “Desenvolva harmoniosamente sua mente e técnica” foi usado em muitos dojos americanos.

Fukuda Keiko teve um papel fundamental na divulgação do judô feminino em todo o mundo. Com sua equipe de peregrina, ela ministrou cursos na Austrália, Canadá, em toda a Europa e em muitos outros países, enfatizando o ensino do kata e os benefícios físicos e mentais da prática do judô. Nono dan em 2006 pela Kodokan e 10 pela federação americana, aos 93 anos, como a última aluna sobrevivente de Kano Jigoro Shihan, ela não se esqueceu das dificuldades que teve que superar em um mundo de homens.

Aula de Judô com Keiko Fukuda - © USJF archives
Aula de Judô com Keiko Fukuda – © USJF archives

Sem essas mulheres corajosas, o judô feminino não seria o que é hoje. A comunidade do judô deve muito a elas. Voltaremos em breve aos primórdios da competição feminina, o que nos levará a falar dos primeiros campeonatos mundiais em Nova York.

Fonte: Judo for the World por Michel Brousse e Nicolas Messner – IJF julho 2015 (IJF.ORG)

Tradução: JudoCTJ