O Judô tradicional é aquela prática de judô que reflete e adere aos objetivos e princípios da arte como Jigoro Kano apresentou em seus ensinamentos e escritos. Aí reside o problema para os judocas do século XXI que desejam praticar da maneira antiga. O judô passou por muitas mudanças dramáticas ao longo dos anos desde a sua introdução em 1882 e agora é largamente praticado como um esporte. É difícil encontrar um professor que tenha recebido a instrução básica e fundamental do judô original de Kano para transmitir aos alunos de hoje. Essa escassez de instrução específica deu origem, no decorrer do tempo, a várias formas do que é chamado de Judô Clássico, em que as idéias do judô tradicional são freqüentemente baseadas em muita prática de omote kata (forma de demonstração) e evitação da competição.

Nenhuma dessas noções reflete o programa do Judô Tradicional ou serve para abordar de maneira completa as intenções declaradas por Kano de sua arte.

O judô do Prof. Kano foi concebido como um sistema educacional inter-relacionado de três partes. Ele estabeleceu o rentai-ho para o desenvolvimento do corpo através de treinamento, shobu-ho para o desenvolvimento de habilidades de competição e shushin-ho para desenvolvimento mental e moral.

O cultivo de um corpo físico forte (através de rentai-ho) e o desenvolvimento de habilidades de competição (através de shobu-ho) resultaram juntos em Kyogi Judô, ou judô no sentido estrito [N.T.: “kyogi” em japonês significa “falso”, “distorcido”, “fictício”. Talvez Kano estaria dizendo que o Kyogi Judô não é o judo real, verdadeiro. Mas talvez a melhor forma de traduzir seria dizendo que Kyogi Judô é o judô limitado, incompleto]. Kano pretendia que os praticantes de judô também alcançassem um nível mais alto de auto-realização através do shushin-ho e assim alcançassem o Kogi Judô, ou judô no sentido amplo [N.T.: por oposição ao significado de Kyogi Judô, Kogi Judô é o judô real, verdadeiro, o judô completo]. O cultivo do eu e do espírito deveria colocar os praticantes no caminho para o objetivo final do judô de Kano: a perfeição do caráter para si e para os outros.

Kyogi Judô - O judô no sentido limitado, reduzido. Desenvolvimento do corpo físico e de habilidades para fins puramente esportivos e individuais

Kyogi Judô – O judô no sentido limitado, reduzido. Desenvolvimento do corpo físico e de habilidades para fins puramente esportivos e individuais

O objetivo final do estudo do judô é treinar e cultivar corpo e mente através da prática no ataque e na defesa, e assim dominando os fundamentos da arte, para alcançar a perfeição de si mesmo e trazer benefícios para o mundo.

Essa busca é o propósito por trás da prática do Judô Tradicional, em contraste com o modelo esportivo que se concentra principalmente em lutar na arena competitiva. Enquanto os praticantes do judô tradicional participam do shiai para testar suas habilidades e os judocas esportistas colhem os benefícios do fortalecimento do caráter de uma dedicação ao esporte, cada uma dessas abordagens mantém seus objetivos e métodos distintos de instrução e treinamento.

Os ideais de judô de Kano são encapsulados nos 3 preceitos do judô: Seiryoku zenyo (Melhor uso de energia); Jita kyoei (Prosperando juntos); Jiko no kansei (aperfeiçoe a si mesmo para o beneficio da humanidade).

Como esses objetivos e ideais podem ser alcançados através da prática de uma arte marcial? A resposta completa está além do escopo deste texto. No entanto, a breve discussão aqui pode transmitir uma ideia dos conceitos do judô tradicional. Problemas na tradução, mudanças na linguagem ao longo do tempo, e as diferenças culturais levam a distorções e interpretações errôneas da intenção original em aplicações posteriores e especialmente transculturais. Assim, o judô tradicional coloca uma grande ênfase na compreensão de conceitos e princípios em termos do contexto cultural do qual eles surgiram.

O Judo de Kano enfatiza princípios: tanto o ensino de como o ensino por princípios. Ao ensinar por princípios, técnicas são vistas como expressão de princípios. Como tal, uma variedade de técnicas diferentes pode ser apresentada em uma lição como um estudo no mesmo princípio subjacente. O foco está no princípio que eles compartilham e na maneira como isso se manifesta através de diferentes técnicas. Desta forma, os alunos são expostos às conexões e relações entre as técnicas através da compreensão dos princípios que os impulsionam.

A expressão física dos princípios é a primeira lição sobre o caminho para o kogi judo. A abordagem de Kano ao ensino de judô começa com a experiência da prática prática de um princípio em sua forma mais básica e visceral – a operação física do princípio na execução da técnica. A compreensão cinestésica do princípio constitui a base para a compreensão de aplicações superiores (não físicas) do princípio, tanto dentro como fora do dojo. Como exemplo, pode-se aprender o significado de ju como o de ceder e redirecionar.

Ju contém em si o conceito de evitar um choque direto de força ou vontade em favor do redirecionamento da energia recebida para o próprio propósito. Assim, ju pode ser aplicado em situações dentro e fora do dojo como um meio de reduzir a contenção sem sacrificar a posição de alguém.

Kogi Judô - Desenvolvimento físico e moral para benefício da humanidade

Kogi Judô – Desenvolvimento físico e moral para benefício da humanidade

O Gokyo no Waza desempenha um papel central na estrada para o Kogi judô, especialmente através de suas ilustrações de seiryoku zenyo e suas maiores aplicações para a vida cotidiana. Seiryoku zenyo foi identificado por Kano como o princípio governante de sua arte. O judô tradicional enfatiza a ligação da operação de princípios do nível físico ao contexto mais amplo da aplicação filosófica.

A prática de kata no judô tradicional serve para ilustrar e expandir os princípios subjacentes. O kata é visto como um veículo para a preservação de conhecimentos essenciais e como um recurso, guia e fonte de aplicação extensiva de princípios. As lições tiradas do kata podem ser integradas em qualquer situação de ensino apropriada no dojo. Exemplos de kata devem ser abordados e praticados como parte do aprendizado e domínio das técnicas e suas aplicações. O Kata não é visto como um conjunto de formas periféricas para as lições reais do randori-waza. Não é reservado para prática ocasional como requisito para um exame para promoção. Os kata ilustram usos, aplicações e estratégias para técnicas e assim formam partes vivas de lições no dojo. O Kata também é conhecido por seu ura – seu “lado reverso/oculto” – todo o conjunto de variantes e aplicações associadas que estão conectadas ao omote, a “frente” ou forma de demonstração que nós tendemos a considerar como o kata.

Da mesma forma, o goshin-waza do Judô Tradicional não são reservados para a prática apenas em kata, mas são trazidos para as lições como aplicações extraídas do kata e integradas com vários randori-waza, conforme apropriado. O programa permanece internamente consistente devido à coerência dos princípios subjacentes de randori- e goshin-waza. Claramente, ainda são feitas distinções entre técnicas permitidas em situações de competição e aquelas reservadas para a prática de dojo, mas todas podem ser praticadas juntas em um dojo de judô tradicional.

Assim, o Judô Tradicional é uma arte cujo objetivo principal é a auto-realização através da internalização de princípios expressos e aprendidos primeiro através da prática física e depois aplicados na vida diária para a melhoria de si e para o benefício da sociedade.

Por: Linda Yiannakis, 5° Dan de Judô