O Sensei Odair Borges deu recentemente uma entrevista muito interessante e rica de detalhes sobre as origens do Jiu-Jitsu no Brasil. A entrevista foi publicada pela Brasil Combate, e reproduzida na íntegra abaixo.

1-BRASIL COMBATE: Como e quando seu pai, José de Almeida Borges, teve o primeiro contato com as artes marciais?

ODAIR BORGES: Meu pai adorava qualquer tipo de luta. Ele era nadador do Clube Campineiro de Regatas em Campinas-SP. Nessa região, o que era conhecido em termos de artes marciais era a Luta Livre. Essa paixão fez com que ele arrumasse um barracão no Clube Campineiro e começou a praticar Luta Livre e isso atraiu pessoas interessadas e de outras modalidades. Isso foi em 1943 e ele tinha 22 anos. Ele comentava que na época chegou a conhecer um lutador de Jiu Jitsu do Rio de Janeiro, que foi o primeiro contato dele com a Arte. Outra forte influência era da colônia japonesa local, que tinha alguns lutadores de Judô e dentre eles o Sensei Yoshima, que é considerado o introdutor do Judô na região.

Meu pai logo entrou em contato com ele, mas como a colônia era muito fechada, era necessário o Sensei pedir permissão para outros Senseis de São Paulo como o Sensei Fukaya e outros para poder ensinar o Judô para estrangeiros.

O Sensei Yoshina conseguiu a autorização de ensinar e meu pai arrumou um amigo que tinha carro para buscar o Sensei Yoshima na fazenda onde morava para que eles pudessem ter aulas. Era uma distância danada!

2- BRASIL COMBATE: Como seu pai teve o primeiro contato com o Jiu Jitsu?

ODAIR BORGES: É importante frisar, que quando meu pai começou a aprender Judô com o Sensei Yoshima, a denominação Judô estava começando a ser usada, pois muitos chamavam de Jiu Jitsu e o Judô de “novo Jiu Jitsu”.

O que eu vim a descobrir depois com quando estava no Japão, é que toda aquela luta de solo já era do Judô tradicional, que era oriundo do Jiu Jitsu japonês, mas que não era mais praticado no Judô esportivo

"O que eu vim a descobrir depois com quando estava no Japão, é que toda aquela luta de solo já era do Judô tradicional, que era oriundo do Jiu Jitsu japonês, mas que não era mais praticado no Judô esportivo"

Um dia, meu pai soube que o George Gracie estava em Piracicaba e foi procurá-lo. Chegando lá, ele não pôde assistir a uma aula, pois eram aulas particulares e o aluno não permitiu que ele visse. Além disso, meu pai não tinha condições de pagar a mensalidade e por isso propôs limpar a academia como forma de pagamento e assim começou a ter aulas. Algum tempo depois, o George viu o empenho do meu pai em vir de Campinas para ter as aulas, acabou se afeiçoando muito a ele.

Algum tempo depois, o George mudou para Valinhos, que já era mais próximo de Campinas, facilitando a vida do meu pai. Porém, como era de costume do George, ele logo se mudou e meu pai foi em busca de um novo professor de Jiu Jitsu.

Ele foi parar em São Paulo na academia do Gastão Gracie, na Praça da Biblioteca no centro de São Paulo. Nessa época, o Pedro Hemetério ainda não tinha academia e dava aulas na academia do Gastão. Porém, logo depois o Pedro Hemetério montou sua academia na Av.

Nove de Julho e meu pai começou a ter aulas lá. Ele ia de trem de Campinas a São Paulo uma vez por semana pra ter aulas durante sete anos. Após se formar com Pedro Hemetério, meu pai montou uma academia aqui em Campinas e passou a dar aulas de Judô e Jiu Jitsu.

3- BRASIL COMBATE: Quando o Sr. começou a treinar?

ODAIR BORGES: Eu tenho uma foto de 1950, onde eu tenho três anos e já estou treinando com meu pai e o Sensei Yoshima. Durante toda minha infância e adolescência eu treinei Judô. Quando o Shiaki Ishii chegou ao Brasil, meu pai foi procurar ele e me colocou para fazer aulas particulares com ele. Eu fui o primeiro aluno do Shiaki Ishii no Brasil. Ele morava e dava aulas na Rua Oscar Freire em São Paulo, na academia do Sensei Kurachi.  Mais tarde, comecei também a treinar Jiu Jitsu com o mestre Pedro Hemetério, fazendo a mesma viagem de trem semanal que meu pai fizera. Eu já era o mais novo integrante da seleção brasileira de Judô com 18 anos e, portanto já tinha uma excelente base. O que eu desenvolvi bastante como o Mestre Pedro Hemetério foi todo o programa de defesa pessoal dos Gracie e a luta de chão, como fazer a guarda que são coisas que no Judô eram pouco usadas. O que eu vim a descobrir depois com quando estava no Japão, é que toda aquela luta de solo já era do Judô tradicional, que era oriundo do Jiu Jitsu japonês, mas que não era mais praticado no Judô esportivo.

4- BRASIL COMBATE: Como foi sua primeira viagem para o Japão?

ODAIR BORGES: Depois que eu ganhei uma competição,  a Universidade Gama Filho do Rio de Janeiro (tradicional entidade que apóia o Judô e Jiu Jitsu) me deu uma bolsa para ir treinar no Japão.  Eu tinha 22 anos e nessa época, em 1970, ninguém conhecia o treino japonês. Eu fiquei um mês na casa do pai do Shiaki Ishii, que era meu técnico na época. Depois fiquei na própria Kodokan (templo máximo do Judô mundial) em Tóquio e fiz cursos de Judô lá. Treinava diariamente na Universidade Waseda e foi nesse ano que fiquei no Japão que pude perceber que o Judô possuía técnicas de chão (Ne Waza), ao contrário do que pensávamos aqui no Brasil. Acontece que somente lá no Japão esse Judô  ainda era treinado em alguns lugares.

Academia Borges em 1950. Na primeira fila, da esquerda para direita, o 3º da fila: Odair Borges aos 3 anos.

Academia Borges em 1950. Na primeira fila, da esquerda para direita, o 3º da fila: Odair Borges aos 3 anos.

A Universidade de Waseda também foi muito importante para minha formação, pois era muito conceituada na época, inclusive o irmão do Shiaki Ishii era o capitão da seleção de Judô de Waseda. O Treinador de lá era o Osawa Takagaki Yoshimatsu, que inclusive veio a Campinas numa delegação para disseminar o Judô. Inclusive o Sensei Osawa foi um dos poucos 10º Dan da Kodokan.

5- BRASIL COMBATE: Como foi a adaptação?

ODAIR BORGES: Eu estudei sete meses de Japonês antes de ir, pois eu já tinha esse objetivo. Mas mesmo assim é muito difícil, principalmente ler e escrever. Mas eu consegui me virar, pois acaba sendo obrigado. Em relação aos treinos da Universidade, eram bem rígidos e existia uma diferença muito grande, com um nível técnico muito superior. Eu achava que como sabia o Jiu Jitsu brasileiro, iria chegar lá e pegar todo mundo. Mas não peguei ninguém! Havia alguns mestres na Kodokan que gostavam de chão e perceberam que eu também gostava. Eu me lembro de um Sensei já com seus mais de 50 anos que me chamou para treinar Ne Waza e me pegou na guarda e me manteve em cima como se fosse dar um Tomoe Nagê, mas não me derrubou. Ele falava pra eu sair dali e eu não conseguia!

6- BRASIL COMBATE: O Sr. tem algumas opiniões que divergem sobre a criação e desenvolvimento do Jiu Jitsu Gracie . Fala um pouco sobre isso.

ODAIR BORGES: Nesse período que passei na Kodokan, pude perceber que todas as técnicas que a família Gracie alegava ter inventado, na verdade já existiam no Judô original. O próprio Jigoro Kano teve dificuldades em implementar o novo método, pois haviam alguns mestres de diversos estilos de Jiu Jitsu que já eram especialistas em Ne Waza. O que eu acho que aconteceu foi que realmente o Carlos e o Hélio Gracie, devido a sua fragilidade física, perceberam que a luta de chão era mais eficiente para eles. Com isso, realmente eles DESENVOLVERAM melhor a técnica de chão, enquanto que no resto do mundo, o Judô foi tomando o caminho inverso em direção ao esporte. Inclusive, no Judô os golpes usados no Jiu Jitsu brasileiro já tinham nome e a família fez questão de usar outros nomes para tentar desvincular o Gracie Jiu Jitsu do Judô. Na luta de Kimura contra o Hélio Gracie, a família divulga como se o Kimura fosse o campeão japonês de Jiu Jitsu, mas na verdade ele era campeão japonês de Judô.

Tudo isso eu posso dizer por que conheci a Kodokan e conheci a família Gracie. Quando eu tinha 19 anos, o Pedro Hemetério me levou para o Rio de Janeiro e dormimos na casa do Hélio. Ele nos recebeu muito bem e foi muito simpático. Conheci também o Carlos Gracie na praia. Foi uma situação engraçada. Estávamos eu e o Pedro e de repente o Carlos Gracie veio a nossa procura e disse que tinha um aluno do Carlson, que não me recordo o nome, que dizia que podia finalizar o Pedro. O Pedro respondeu: “Então vamos lá ver!”.  Chegando à academia, já havia até uma aposta entre o Carlos e o Carlson. Um pagava em dinheiro e outra dava um revólver! (risos). A luta foi morna e o Pedro Hemetério colocou o aluno do Carlson dentro da guarda e ficou nisso durante uma meia hora, mas acabaram dando a vitória pro Hemetério.

No outro dia, voltamos na academia do Carlson, pois o Hemetério queria que eu treinasse com o próprio Carlson. O Carlson ficou sabendo que eu era Judoka e quando fomos lutar, ele já entrou direto nas minhas pernas e me levou pro chão. Rolamos um pouco e logo ele me pegou. Ele me elogiou e logo depois chamou o irmão dele, o Rolls, que na época era da mesma idade que eu, ou um pouco mais novo. Rolamos algum tempo, mas ninguém conseguiu finalizar.

7- BRASIL COMBATE: Em relação aos novos caminhos que o Jiu Jitsu deve tomar, o Sr. também tem algumas opiniões diferentes. Qual a direção deveria ser tomada?

ODAIR BORGES: O Marcelo Figueiredo, meu aluno, foi campeão do 1º Campeonato Mundial de Ju Jitsu na regra Internacional. Essa regra exige que o atleta use socos e chutes. Depois de agarrar, só vale quedas e depois as finalizações. No Jiu Jitsu original isso era treinado. Apesar de ser uma luta agarrada, você tem que saber como bater. O próprio Carlson Gracie treinava socos e chutes. O Valdemar Santana também. O Pedro Hemetério ensinava isso. Não era preciso ser um expert, mas tinha que pelo menos saber dar um soco, um chute lateral, etc. Fora é claro, a parte de quedas e projeções, que não se pratica no Jiu Jitsu brasileiro.

pude perceber que todas as técnicas que a família Gracie alegava ter inventado, na verdade já existiam no Judô original

"...pude perceber que todas as técnicas que a família Gracie alegava ter inventado, na verdade já existiam no Judô original"

Eu acho que esse era o caminho para o Jiu Jitsu. Por não ter uma equipe unida, não demos mais prosseguimento em participar desses campeonatos. Apesar dessa preferência, o Marcelo e meus filhos Rafael e Felipe lutaram também em vários campeonatos estaduais e mundiais da CBJJ e inclusive foram campeões algumas vezes. Assim como também eu sempre incentivei eles a participarem de campeonatos de Judô.

8- BRASIL COMBATE: O Sr. mantém equipes competindo ainda hoje?

ODAIR BORGES: Atualmente estou sem atletas competindo porque há alguns anos tive um problema em um campeonato com o Jorge “Macaco”. Acho que os campeonatos de Jiu Jitsu não são bem organizados e alguns professores, por ter maior influência, querem ganhar no grito. Achei uma falta de respeito muito grande dele e fiquei desmotivado há participar dos campeonatos.

9- BRASIL COMBATE: E quanto ao panorama atual do Judô?

ODAIR BORGES: Acredito que deveriam acontecer algumas mudanças para que o Judô se propagasse mais, pois essa era a vontade de Jigoro Kano. Talvez mudar algumas regras para ficar mais atrativo. Eu acho que a técnica essencial veio se perdendo. Com o advento do esporte, o Judô perdeu um pouco seu lado marcial. Eu não aprecio esse Judô que praticam agora. Os professores ensinam as crianças somente a lutarem e não o verdadeiro Judô. Outra coisa é a nomenclatura dos golpes que está sendo usada, que é horrível. Outro dia, vi uma entrevista com o Flávio Canto se referindo a “catada”, “double leg”, “single leg”,etc. Um Judoka não deveria usar esses termos, pois são golpes que possuem nomes tradicionais. Um atleta que posso destacar e que tem me impressionado com seu nível de Judô é o Tiago Camilo. Gostei muito das lutas que vi dele.

10- BRASIL COMBATE: O que tem achado do nível dos atletas de Jiu Jitsu?

ODAIR BORGES: As lutas que tenho visto na TV tem se mostrado pouco empolgantes. Às vezes o lutador não consegue passar a guarda e fica naquele jogo travado. Héio Gracie e Pedro Hemetério eram contra pontuação, pois o objetivo era finalizar. Agora tem até mesmo “vantagens”. Eu vejo que a maioria dos atletas quer mesmo é fazer Vale Tudo. Quando estive no Rio de Janeiro há alguns anos atrás, levei alguns alunos pra treinar na academia do Royler Gracie e gostei muito da técnica dele.

11- BRASIL COMBATE: O Sr. tem acompanhado Vale Tudo?

ODAIR BORGES: Vi recentemente a luta do Minotauro contra o Randy Couture. Tenho visto algumas lutas do Lyoto Machida. As lutas de Vale Tudo agora quase só tem pancadas. Os atletas precisam ter muita resistência para agüentar tanta pancada.

12- BRASIL COMBATE: Algum novo atleta se destacando?

ODAIR BORGES: Eu tenho aluno de 14 anos chamado Paulo, que veio através de uma ONG que faz um trabalho social com crianças carente. Eu faço um trabalho de base com ele. Ele tem se mostrado promissor, tanto no Judô como no Jiu Jitsu. Além disso, meu filho disputou o mundial de Luta Greco-Romana e ele tem ensinado o Paulo até mesmo essa modalidade. Eu não gosto de pressionar os alunos infantis para fazer competições e deixo-os amadurecerem naturalmente. Muitos de meus alunos não tiveram títulos nas categorias infantis e juvenis, mas foram campeões na categoria adulta.

13- BRASIL COMBATE: O Sr. continua com as aulas?

ODAIR BORGES: Sim, temos dias de treino de Judô e dias de treino de Jiu Jitsu e também mantenho aulas particulares. Ensino defesa pessoal começando com o judô para derrubar, depois a parte de solo para imobilizar e finalizar. É uma abordagem completa. Eu tenho um aluno particular que é de Capivari. Seu nome é Luís e ele vem uma vez por semana desde a época do meu pai. Ganhou a faixa preta depois de 16 anos e continua vindo treinar.

Quem for da região de Campinas-SP e quiser conhecer nosso trabalho será muito bem-vindo na Academia Borges.